Avançar para o conteúdo principal

Perdão vs Compaixão....

Perdão vs Compaixão
Se queres que os outros sejam felizes, pratica a compaixão. Se queres ser feliz, pratica a compaixão."(Dalai Lama)

Sem me aventurar pelo terreno movediço e polémico da religião, gostaria de sugerir uma pequena reflexão sobre os conceitos de perdão e compaixão.

Há uns largos meses atrás deparei-me com um programa na televisão acerca do efeito terapêutico do acto de perdoar. Confesso que fiquei admirada ao perceber que as pessoas conseguiam nobremente perdoar as piores situações possíveis, e posteriormente emanar uma aura de calma e paz invejável.

Veio-me à memória uma paciente que tinha sido vítima de abuso sexual durante o período da infância e adolescência, e tinha conseguido com uma resiliência incrível, “colocar de lado” o trauma e construir uma carreira profissional sólida, um casamento harmonioso e tido 3 filhos. Ninguém sabia do que se tinha passado na infância, uma vez que ela tinha conseguido sair da aldeia onde tinha sido criada, cortar relações com a família de origem e recomeçado a vida noutro local. No entanto, quando a sua filha mais velha, chegou à idade em que na sua infância os actos de abuso sexual tinham iniciado, todo o seu passado, até agora um mundo invisível, como uma avalanche - “desabou” literalmente…
Procurou terapia de modo a tentar encontrar uma solução prática para este problema. Este “segredo” tinha que se manter privado, e ninguém, nem o marido, poderiam saber do que se tinha passado na infância. Sentou-se no consultório com a convicção de que tinha que perdoar os perpetuadores dos abusos infantis, e assim a situação ficaria resolvida, e ela poderia continuar com a sua vida.

Quando começámos a analisar o verdadeiro significado do acto de perdoar, fomos deparadas com a imensidão desta tarefa e da pressão que a paciente estava a impôr a si própria.
A crença assentava no pressuposto de que o acto de contrição resolvesse o trauma de longos anos de sofrimento, dor e culpa, quase que, esquecendo e desculpando o facto de que uma “criança” tenha sido repetidamente e inocentemente vitimizada, e consequentemente, privada de uma infância saudável.

De modo algum se está a afirmar que o acto de perdoar não é justo e nobre. O que se está a questionar é se será uma solução para crimes medonhos como este; e como se executa o acto de absolvição de culpa, a quem nos magoou, traumatizou e moldou uma infância e adolescência?
Na verdade, cada caso é um caso, e neste em particular, foi efectuada uma longa e dolorosa viagem ao passado, no sentido de reconstruir a confiança na vida, nos outros e em nós. Decidimos em terapia “colocar de lado” o acto de perdoar e dedicarmos-nos ao acto da compaixão.
O dicionário “Webster” define compaixão como: consciência profunda do sofrimento do outro aliado ao desejo de aliviá-lo (…). Esta definição por si parece implicar um processo dinâmico de empatia, consciência e cura. Foi iniciado o processo de reconhecimento do sofrimento desta “criança”, e trilhado um caminho longo, doloroso mas reparador, na direcção da cura e transformação.

A paciente criou passo a passo um mundo interior repleto de carinho, segurança e brincadeira. Construímos um local onde ela pudesse se sentir totalmente segura, estar acompanhada pela natureza e animais, e transportámos para lá igualmente o eu “adulto”, para que pudesse partilhar e relembrar como a infância, pode e deve, ser cor-de-rosa, risonha e feliz.

Posso estar errada, mas sinto que a compaixão, neste caso, foi um acto terapêutico e estruturador.

E quem sabe, se a compaixão pode ser um caminho seguro e firme, que por último, nos leve ao perdão?

Susanne M. Franca
©2012 Susanne Marie Ramos França

Mensagens populares deste blogue

Alma nunca “pensa” sem uma imagem mental” – Será que Aristóteles tinha razão?

De acordo com o psicólogo e investigador Steven Pinker, as nossas vivências são representadas nas nossas mentes em forma de imagens mentais, formando ecos e reconstruções das percepções das nossas experiências do presente, memórias do passado e antecipações de situações e emoções do futuro.   Quando falamos em imagética, geralmente pensamos em visualização. A imagética usa certamente a componente visual, mas a sensibilidade auditiva, visual, olfactiva, gustativa e cinestésica é poderosa, e surge em todos nós em diferentes graus e intensidades. Quem não se lembra de ter ouvido uma música e ser automaticamente transportado/a para uma situação no passado em que essa música teve um significado especial? Entramos num estado alterado de consciência, e saímos do momento presente, vivenciando e sentindo a experiência do passado como se ela estivesse a acontecer agora! Isto é um estado de hipnose! É o pensamento na sua qualidade sensorial pura. Imagética e Cura: Criar novas im...

CHUVA OBLÍQUA

CHUVA OBLÍQUA Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios Que largam do cais arrastando nas águas por sombra Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... O porto que sonho é sombrio e pálido E esta paisagem é cheia de sol deste lado... Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol... Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo... O vulto do cais é a estrada nítida e calma Que se levanta e se ergue como um muro, E os navios passam por dentro dos troncos das árvores Com uma horizontalidade vertical, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro... Não sei quem me sonho... Súbito toda a água do mar do porto é transparente E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada, Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto, E a sombra duma na...

O País das Histórias Perdidas “ – Para onde foi a fantasia?

“O País das Histórias Perdidas “ – Para onde foi a fantasia? “Era uma vez um menino chamado Leonel, que procurava entre os seus sonhos, um que o levasse, num instante, até ao futuro (…). Precisava sentir o futuro, e de saber que ventos esquisitos estragam a magia das crianças e parecem transformá-la num duende que atormenta tantas pessoas quando crescem. Depois de chegar ao futuro, Leonel abriu muitos os olhos assutado. Era grande o seu espanto. O futuro tinha-se transformado, para muitas pessoas crescidas, um país de histórias perdidas…Porque é que chegado ao futuro, a fantasia das crianças parece transformar-se numa folha mais ou menos branca, sem histórias por quem se enamorem? “ (Eduardo Sá em “Tudo o que o amor não é”). Será que ao crescermos nos esquecemos de sonhar? Ou será que não nos esquecemos, mas a vida nos verga e molda desfigurando irreconhecivelmente os nossos desejos e fantasias? Será que crescemos e nos transfomamos num “país de histórias perdidas”? Nos ...